quinta-feira, 12 de novembro de 2015

QUINTA-FEIRA : LITERATURA , PREFÁCIO , A ILHA do DR. MOREAU , H. G. WELLS ... BRAULIO TAVARES .

 COMO EU havia dito mais cedo na matéria sobre o pesquisador de literatura fantástica e escritor , Braulio Tavares , iria publicar o excelente trabalho como pesquisador no prefácio do clássico de H. G. Hells , A Ilha do Dr. Moreau . Não preciso repetir o quanto achei maravilhoso o trabalho no livro e o quanto gostaria de compartilhar o talento e inteligência desse brasileiro que sou fã , Braulio Tavares .

A Ilha do Dr. Moreau - H. G. Wells : Tradução , prefácio e notas Braulio Tavares .

                                      Prefácio

Se A Máquina do Tempo , O Homem Invisível e A Guerra dos Mundos eram exemplos de ficção científica "pura" no começo da carreira de H. G. Wells , A Ilha do Dr. Moreau (1896) é uma forma híbrida entre FC (ou o Scientific Romance , como era chamado na Inglaterra daquele tempo) e o romance de aventura em lugares exóticos . As últimas décadas do século XIX foram um espécie de idade de ouro da literatura de aventura fantástica . O sucesso dos livros de Julio Verne a partir dos anos 1860 desencadeou esse processo , e as obras de Wells surgiram num ambiente literário que já conhecia também A Ilha de Coral , de R.M. Ballantyne (1857) , A Ilha do Tesouro , de R. L. Stevenson (1882) , As Minas do Rei Salomão (1885) e Ela (1887) , de H. Rider Haggard .
 São referências importantes para A Ilha do Dr. Moreau , porque aquela foi uma época de aventuras literárias em mares ou terras distantes , refletindo o lado otimista e eufórico do colonialismo , que transformava o planeta num "Simba Safári" para europeus entediados . Mas Moreau exprime , de certa forma alegórica , o lado sombrio desse processo ; e podemos lembrar outro livro que , sem ser propriamente um romance de aventura (é demasiado realista e tenebroso para ser classificado assim , embora sua estrutura de peripécias se assemelhe às obras do gênero) , é O Coração das Trevas , de Joseph Conrad (1899) . O livro de Wells é uma novela realista com ressonâncias góticas (no sentido do triunfo de forças malignas e imcompreensíveis sobre as racionalizações da mente civilizada) .
 O Coração das Trevas fala da viagem de Marlow , o narrador , em busca de Kurtz , administrador de um remoto entreposto comercial na África . Kurtz é elogiado por todos os que o conhecem como sendo um homem notável , artista , intelectual , idealista , dedicado a civilizar os africanos . Quanto mais se aprofunda na floresta , ao longo de meses , Marlow vai se espantando com a desumanização absurda que os negros sofrem pela invasão branca ; e quando encontra Kurtz percebe que este se transformou num contrabandista de marfim , assassino , e que participa com os negros de rituais abomináveis (que o livro não explica quais são , mas que horrorizam o narrador) .
 O Coração das Trevas é uma versão realista da alegoria mostrada em A Ilha do Dr. Moreau . O choque entre civilizados e primitivos , em vez de civilizar estes últimos (em vez de transformar "animais" em "homens") , gera um atrito espantosamente cruel que acaba por animalizar a todos . É da natureza do colonialismo usar por um lado um discurso missionário e civilatório ("estamos aqui para transformá-los em criaturas superiores , iguais a nós") e por outro uma prática que acaba por desumanizar os próprios civilizados .
 No Livro de Wells , Prendick foge da ilha e retorna a Londres , mas fica vendo os homens-animais em cada rosto com que cruza nas avenidas . São dois livros para ler e lembrar em conjunto , quase como se fosse o espelho reverso do outro .
 Um detalhe curioso que aproxima as duas narrativas na memória popular é o fato de que Marlon Brando interpretou o coronel Kurtz (inspirado no Kurtz de Conrad) em Apocalipse Now , de Francis Ford Coppola (1979) , e também interpretou Moreau no filme dirigido por John Frankenheimer em 1996 .
 Existem ressonãncias da Ilha do Dr. Moreau em outra obra crucial da literatura inglesa , que é o Animal Farm , de George Orwell (1954) , conhecido no Brasil como A Revolução dos Bichos . Nesta alegoria , os animais expulsam os humanos da fazenda , apropriam-se de suas instalações e estabelecem um conjunto de leis (a favor dos bichos , contra os homens) que são uma inversão da lei imposta pelo dr. Moreau aos seus bichos humanizados . Alguns animais percebem que os porcos , os líderes do movimento , estão espontaneamente andando sobre as patas traseiras , ou seja , transformando-se em homens , seus grandes inimigos .
 A oposição entre homens e animais (e a sua possível miscigenação) é um tema clássico da ficção científica , quase sempre com conotações meio darwinianas , em que a passagem de animal para ser humano é vista como um avanço e o seu contrário como uma regressão perigosa . Claro que uma equação tão simplista se transforma num desafio a ser enfrentado , e muitos autores tentam provar que ser animal pode ser algo superior a ser homem : é o tema do fascinante conto de Clifford D. Simak , "Desertion" (1944 , como parte do romance City) , em que astronautas que colonizam o planeta Júpiter encontram a transcendência e a felicidade quando se transformam numa forma de vida local , o lopers , espécie de felinos saltadores . Também Cordwainer Smith , em sua série de histórias interligadas sob geral de The Instrumentality of Mankind , imagina um futuro em que haveria uma simbiose entre seres humanos e gatos para pilotar mentalmente as espaçonaves de então , e que gatos pudessem ser em parte transformados em homens e mulheres de aspecto sedutor .
 Voltando a H. G. Wells e à Ilha do Dr. Moreau , é preciso observar que o livro teve uma recepção muito polêmica em sua época , por ter sido visto em grande parte como uma sátira virulenta , swiftiana , à sociedade de então . Jorge Luis Borges observou ("O primeiro Wells" , em Outras Inquisições) : "O conventículo de monstros sentados que recitam em voz fanha , noite afora , um credo servil , é o Vaticano e é Lhassa." A caricatura ácida dos rituais religiosos e políticos também não passou despercebida aos contemporâneos de Wells . O jornal inglês The Guardian , em junho de 1896 , afirmou que "seu propósito parece ser parodiar a obra do Criador da raça humana , e enxergar de maneira negativa as relações de Deus com as Suas criaturas" . Todo o livro de Wells é perpassado pela impressão (através dos olhos de Prendick) de que a diferença entre o Povo Animal de Moreau e nós mesmos é uma diferença meramente de grau , não de essência .
 A Lei de Moreau é um processo misto de lavagem cerebral e hipnotismo , que ele explica de certa forma convincente a Prendick no capítulo XIV . O coceito de mandamentos verbais inculcados à força de repetição faz parte , é claro , da maioria das religiões formais , e é sempre um eficaz processo de controle psicológico . Em termos de ficção científica podemos ver na Lei de Moreau um embrião da ideia das Leis da Robótica que viriam a fazer a fama de Isaac Asimov . E , assim como grande parte dos contos de robôs de Asimov mostra os sofismas e os truques usados pelos robôs para desobedecerem às Leis , o animais de Moreau se comportam do mesmo modo : "A série de proibições chamada A Lei - que eu os vira recitando - lutava em suas mentes contra os impulsos selavagens profundamente arraigados em sua natureza . Vim a saber que eles passavam o tempo inteiro a repetir a Lei - e a desobedecê-la ."
 Moreau é mais um personagem que ajudou a cristalizar na memória do público o conceito do "cientista louco" ,uma expressão vaga que inclui desde os cientistas realmente insanos de tantas histórias de pulp fiction quanto cientistas ambiciosos , obcecados , e que menosprezam as leis humanas , como o Victor Frankenstein de Mary Shelley e o dr. Jekyll de R. L. Stevenson , além de Griffin , o "homem invisível" do próprio Wells . E Pertence também a uma longa tradição literária de histórias sobre ilhas remotas , governadas por um indivíduo todo-poderoso que realiza ali experiências fantásticas : o Capitão Nemo de A Ilha Misteriosa , de Julio Verne (1874) , o Morel de A Invenção dos Trinta Ataúdes , de Maurice Leblanc (1919) , o Morel de A Ilha de Morel , de Adolf Bioy Casares (1940) , o rel de A Invenção de Morel , de Adolf Bioy Casares (1940) , o Conchis de O Mago , de John Fowles (1966) , e outros . O isolamento da ilha confere poderes quase divinos a esse indivíduo , que de certa forma brinca de ser Deus ( o romance de Fowles teve como primeiro título de trabalho The Godgame) com todos aqueles que ali aportam por acaso . O ancestral mais ilustre dessa linhagem é Próspero , de A Tempestade , de Skakespeare (1610-1611) .
 Num artigo da revista Science Fiction Studies (número 84 , julho de 2001) , Ian F. Roberts defende com bons argumentos a tese de que Wells teria se inspirado , ao criar o dr. Moreau , em Pierre Louis Moreau de Maupertuis (1698-1759) , cientista , matemático e filósofo , com estudos sobre biologia que o fazem ser considerado um precirsor da Teoria da Evolução . O Moreau de Wells , mesmo sendo um dos "cientistas loucos" mais famosos da FC , não chega a ser uma figura trágica ; falta-lhe certa nobreza de princípios que podemos entrever no Capitão Nemo ou no dr. Jekyll , personagens torturados entre impulsos altruístas e impulsos destrutivos . Mais do que a crueldade de Moreau , Prendick censura a gratuidade do seu projeto científico , que o leva a vivisseccionar animais por mera curiosidade , mero capricho - e depois largá-los ao seu próprio destino , nem homens nem bichos .
 Ao explicar a Prendick o propósito de suas experiências , Moreau afirma , no capítulo XIV : "Eu queria - e não queria mais nada além disto - encontrar o limite extremo da plasticidade de uma forma de viva." Wells havia desenvolvido esse conceito num artigo de 1895 , "The Limits of Individual Plasticity" (Saturday Review) , no qual afirmava : "Um ser vivo pode ser considerado uma matéria-prima , alguma coisa plástica ... que pode ser tomada nas mãos e tão moldada e modificada que na melhor das hipóteses guardaria apenas um resíduo de sua forma e sua fisionomia original ." É curioso notar que esse mesmo conceito de plasticidade , de algo que pode ser manipulado um número incontável de vezes , é o mesmo que Jorge Luis Borges encontra para elogiar (no artigo citado anteriormente) as obras de Wells : "A obra que perdura é sempre capaz de uma infinita e plástica ambiguidade ; é tudo para todos , como o Apóstolo ; é um espelho que revela os traços do leitor e é também um mapa do mundo . Isto deve ocorrer , ademais , de um modo evanescente e modesto , quase a despeito do autor ; este deve aparecer ignorante de todo simbolismo ."
 Wells narra o pesadelo criado por Moreau em sua ilha através dos olhos de Prendick , um narrador fisicamente mal-tratado , psicologicamente inseguro e nervoso , e que logo percebemos ser capaz de enormes erros de interpretação do que vê (ele julga , a princípio , que Moreau está transformando seres humanos em animais) . Contraditório e desesperado , Prendick emite juízos éticos sobre o comportamento de Moreau que seriam incômodos num narrador impessoal , mas que aceitamos como parte de seu conflito íntimo . Para além disso , a narrativa de Wells tem essa plasticidade a que Borges se refere . Pode servir como uma crítica à religião ; uma crítica à organização social ; uma parábola sobre a crueldade da ciência ; uma fábula darwinista ; uma alegoria do modo como o colonialismo europeu procurava "civilizar" os primitivos ... Essas e muitas outras interpretações se superpõem e se entrelaçam , tornando mais densa a trama desta pequena novela escrita há mais de um século .

                                                                       Braulio Tavares

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